sábado, 16 de agosto de 2008

Despedida

Na mesa do canto, sentada ao lado do bar ela descansou o corpo exausto, cerrou os olhos e com um sorriso sereno ficou ali até se darem conta de que tinha partido.
Acordava pontualmente às sete e trinta da manhã todos os dias. As sandálias de tecido ficavam embaixo da cama, do lado direito, onde sempre dormiu, próximo à janela.
Enquanto descia as escadas ouvia o latido do cachorro, um basset branco que já a acompanhava há mais de uma década. Os latidos se tornaram fracos e o olhar ficou perdido com o tempo. Enquanto a procurava pelo cheiro, ela afagava sua cabeça com as pontas dos dedos.
O casamento durou cinqüenta anos. O marido era oficial da marinha e se conheceram no interior de São Paulo, durante a temporada do seu grupo de ballet naquela cidade. Até que sua transferência fosse definida para o Rio de Janeiro, trocaram cartas apaixonadas por longos dois anos.
Costumavam passar as tardes de sábado passeando ao redor da lagoa Rodrigo de Freitas e emendavam com uma paradinha na Confeitaria Colombo para degustar um petit four. Demorou até que seu pai permitisse que fossem sozinhos ao Cine Odeon, antes só com a companhia da irmã mais nova de treze anos.
Depois do casamento as sapatilhas foram penduradas. Cinco meses de casada e já esperava o primeiro dos três filhos homens que tivera. A ausência do marido fora sentida, inclusive, na hora do primeiro parto por conta das viagens que duravam meses.
A solidão sempre acompanhou sua vida quando ia sozinha para o quarto depois de colocar seus filhos para dormir. Isso durou até a aposentadoria dele. Até então ela cuidava de tudo, da casa, da escola das crianças, do encanamento estourado e das negociações do preço de carne no mercado.
Todo último sábado do mês ela deixava os meninos com sua mãe e dizia ir à igreja para a reunião mensal da paróquia. Pegava a lotação e ia ao centro da cidade assistir ao corpo de ballet no Teatro Municipal. Os olhos marejavam e as mãos suavam, enquanto as cadeiras eram ocupadas. Ela sentava na terceira fileira, cadeira número 8. As lágrimas caíam sem seu controle, assim que as luzes se apagavam após o soar do terceiro sinal. Acabava o espetáculo e ela ficara ali por alguns minutos, em êxtase.
Após a reserva do marido, seus passeios de fim do mês acabaram e seu segredo ficaria guardado, as únicas provas estariam restritas a uma caixa de sapatos dentro do armário com todos os canhotos dos ingressos. Viveu para atender aos caprichos que a velhice impusera àquele homem alto, cheio de manias e que encarava suas rotina com rigor militar.
Acordava antes dele, fazia o café, preparava o almoço e no final da tarde colocavam as cadeiras de madeira na porta para observar o movimento da rua antes de assistir ao jornal da noite e deitarem às 22 horas, como de costume. E foi num final de tarde, com o crepúsculo no céu daquele outono, depois que voltara da cozinha com a xícara de café que ela encontrou seu amor que a acompanhou por toda a vida dormindo profundamente com os pés erguidos na cadeira da frente. Seu sorriso foi embora com aquela despedida.
Os filhos, já todos casados, tentaram convencê-la a ir morar com um deles, mas ela sempre independente, preferiu dividir com seu cão de estimação a casa grande no bairro de Santa Tereza. Os netos a visitavam aos domingos junto com os pais, mas assim que se tornaram adolescentes a freqüência diminuía a cada mês. Ao final somente Fábio, o filho mais novo almoçava com ela as terças e quintas por conta da proximidade com seu trabalho. Os outros dias da semana sentava sozinha, sempre com a postura ereta na mesa do canto em um restaurante simples perto de uma pracinha no final da rua.
O convite veio por telefone, a neta mais nova ia fazer apresentação de fim de ano na escolinha. Ela, vaidosa, arrumou-se cedo e sentou-se no banco de trás do carro do filho do meio, enquanto a nora ia na frente falando ao telefone móvel e mal a cumprimentou, como de costume.
Em meio a pais disputando o melhor espaço para as fotos, ela ficou no canto em pé e viu naquela criança ainda desajeitada um retrato de si mesma. A menina compenetrada mal olhava para a platéia e exercia com extrema competência os passos e a coreografia daquela atração. Ao final recebeu um beijo e um afago da neta que antes de falar com os pais veio correndo ao encontro da avó saber sua opinião.
Voltou já à noitinha e em vão após o asseio noturno foi para a cama. Perdeu o sono, acendeu a luz do quarto e com dificuldade tirou uma caixa de papelão encapada com papéis floridos. Lá, fotos amareladas, laçarotes, os canhotos dos ingressos e a sapatilha gasta enrolada com a fita de cetim branca. Durante uma semana ela desfez-se de móveis, roupas e contratou uma pessoa para limpar a prataria e encerar o piso da casa.
No sábado pela manhã, deu um banho demorado no cão, o secou com secador e permitiu que ele ficasse no seu quarto até o começo da noite. Tomou um banho demorado, penteou com esmero os cabelos finos e prendeu com um dos laços fazendo um coque atrás da nuca. Colocou meia-calça cor da pele, anágua e separou o vestido preto com brilho que usou no casamento de um dos filhos. Um pouco de colônia nos pulsos e no pescoço, pó de arroz no rosto, blush nas bochechas e um batom discreto nos lábios.
Deixou o cão na vizinha e deu um beijo demorado na sua cabeça, o táxi a esperava na porta.
Ouvia a música alta na esquina antes de chegar aquela casa com escadaria íngreme. Assim que alcançou o último degrau avistou o piso quadriculado em preto e branco, a orquestra ao fundo, corpos suados e saias rodadas com o movimento dos ritmos. Respirou fundo. Os olhos brilharam e foi em direção à pista com um sorriso que ensaiava sair no canto da boca há exatos 50 anos.

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